Por Carolina Varella

Da janela do carro, um retrato em movimento forma um horizonte de poucas árvores… Retorcidas em si próprias e de raízes profundas, daquelas que se esforçam muito por encontrar água, e espalhadas em meio a uma vegetação amarela quase seca demais. Não posso nem dizer que essa visão não me fez abismar, a cada novo quilômetro, em pensamentos um tanto escassos; mas também não posso dizer que o calor intenso não ajudou a confundir os sentidos.  

Com o tempo fui, involuntariamente, percebendo que a aparente vulnerabilidade do cerrado fala mais sobre sua resistência. Talvez isso tenha acontecido depois de reparar nas sempre-vivas canelas de ema, uma planta nativa que colore o cerrado brasileiro, ou quando reparei na cor, e na suposta casualidade, dos ipês verdes, roxos, rosas… Talvez tenha acontecido quando vi araras sobrevoando o carro quando tudo parecia tão parado… E me vi a contar os infinitos tons de ervas, até que subitamente morros imponentes surgiram para tirar de vez meu fôlego.

Depois de 1.288 quilômetros percorridos em 14 horas de carro, de São Paulo até o primeiro pedaço da Chapada dos Veadeiros, foi assim que esse lugar me abraçou, mais uma vez, depois de seis anos. E me pôs novamente na sua jornada que, já adianto, é algo mais sobre a vivência construída ao longo dos (próximos) dias, onde os caminhos e o caminhar são, literalmente, a própria viagem. 

O Waze nos guiou para um dos polos do ecoturismo do Brasil, o coração da terra, regado a banhos energéticos das suas mais de mil cachoeiras e da sua viva cultura popular, mas, mais precisamente, indicava Alto Paraíso, onde nos hospedaríamos pelos primeiros dias e onde, normalmente, os turistas se hospedam mesmo — por ser mais urbano e estrategicamente localizado (perto do posto de gasolina, de muitas cachoeiras etc). 

 

CHEGAR E SE ACONCHEGAR

Ao chegar, é preciso se aconchegar, porque o dia seguinte já é de trilha. Logo pela manhã, é hora de tomar um café reforçado (recomendo tomar ali na padaria Santa Maria) e partir de carro por estradas de asfalto e terra até a entrada das trilhas, cujos trajetos podem levar 30 minutos ou três horas; e mais 30 minutos ou três horas a pé, cruzando a savana mais rica do mundo, entre pirambeiras, ‘escalaminhadas’, rios e um Sol que poucas vezes divide espaço com a sombra. 

Por meio desses ciclos rotineiros de acordar e dormir no cerrado você percebe que a magia desse lugar está no que chamo de “cadência da Chapada”.  

Porque é como se, ao longo da viagem, adentrássemos um certo frenesi rítmico, em que, todos os dias, alvoradas matutinas são seguidas de longos deslocamentos até as cachoeiras, nos ensinando a cada passo que não adianta ir com pressa demais e nem parar demais; que, na Chapada, sempre é tempo para um bom papo; que o bom humor engana o medo; e que o Sol flameja sob as nossas cabeças até que sutilmente ele se afasta, dizendo que é hora de voltar. Ritmo nesse lugar é essência, no sentido de pulsão, ciclo, ritual e, principalmente, equilíbrio, com você, com as pessoas e com as paisagens em sua volta.

 

PRIMEIRA VEZ CHEGUEI VOANDO, NA SEGUNDA CHEGUEI POR TERRA

 

Na primeira vez, em 2016, fiquei dez dias na vila de São Jorge. Um vilarejo de terra pitoresco, onde está a entrada do Parque Estadual da Chapada e onde acontecem as edições anuais do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, encontro cultural multiétnico entre povos indígenas, quilombolas e brasileiros de outras raízes. E para mim, diferente da maioria das pessoas, o melhor lugar para se hospedar.

De mochila nas costas e um tanto mal preparadas, minha irmã e eu embarcamos de avião para Brasília, depois pegamos um ônibus até Alto Paraíso e, por último, já no escuro da noite, conseguimos uma carona improvisada até o vilarejo de São Jorge, que fica a 40 minutos de Alto Paraíso, a “capital” da Chapada. 

Sem muitos planos, aproveitando as caronas solidárias (e seus respectivos itinerários), essa viagem foi uma experiência única… Logo, minha segunda ida para a Chapada haveria de ser bem diferente, ainda mais seis anos depois. Seria equivocado tentar ressignificar a Chapada, porque voltar depois de um tempo pode ser uma experiência tão única quanto visitar dois lugares diferentes. O desafio estaria em saber distinguir o que estava diferente de fato e o que estava diferente em mim. 

Desta segunda vez fui de carro, ficando os primeiros dias em Alto Paraíso e só depois fui para São Jorge. Porque ou você viaja com seu carro ou pega um voo até Brasília e, de lá, aluga um carro. Quer dizer, não dá para ficar sem carro, e minha irmã e eu só fomos aprender isso chegando lá! 

Pelas estradas de Goiás, a predominância dos pastos e da monocultura mostra uma natureza enfraquecida e quem manda por aqui. Mas chegando a Alto Paraíso, quando comecei a ver mais árvores, daquelas retorcidas, como bem lembrava, veio a sensação de alívio. Eu estava, enfim, na Chapada, um ‘oásis’ de preservação em meio ao agronegócio –por conta do parque, da reserva dos quilombos Kalungas, entre outras áreas preservadas, ainda que o espaço das lavouras na região tenha aumentado em 300% nas últimas décadas.

O contraste entre os campos devastados e a vegetação do parque me fez chegar à Chapada com uma consciência diferente, achando que esta viagem me traria vivências mais tangíveis e não tão mágicas, ainda que carregasse a certeza de que entranharia a inevitável “cadência da Chapada”. Como numa metáfora, dá até para dizer que da primeira vez cheguei voando e, da segunda vez, cheguei por terra. Mas será que tudo é mesmo uma questão de referencial?

  

 

TURISMO DE MASSA X TURISMO EXCLUSIVO

 

Quando fui para a Chapada dos Veadeiros pela primeira vez, paguei em torno de R$20 para visitar a famosa Cachoeira do Segredo, enquanto nas demais cachoeiras que visitei entrei de graça. Já na segunda vez, não só paguei o dobro para entrar nessa mesma cachoeira, como tive que pagar pelo menos R$40 para visitar as demais — nem que fosse pela simples vontade de me refrescar do Sol do cerrado (claro, sempre existem cachoeiras alternativas que podem ser acessadas de graça, mas te desafio a encontrá-las!). Além de, eventualmente, me deparar com uma corda impedindo que eu chegasse até a queda da cachoeira ou de ter um limite de tempo para a visita.

Tudo bem diferente, não parece muito uma questão de referencial.

A situação atual é uma resposta ao aumento do turismo. Nos últimos anos, o turismo cresceu muito na Chapada devido à pandemia, principalmente, que limitou a circulação para fora do país e aumentou a busca por destinos de natureza. Nesse sentido, o aumento no valor das entradas, assim como em todos os demais aspectos turísticos, como hospedagem, restaurante e lojas é uma forma de restringir o acesso da Chapada àqueles que podem pagar e assim controlar o número de turistas.

Em outras palavras: o aumento no valor da viagem indica que está acontecendo uma movimentação, consciente ou não, em direção ao turismo exclusivo (até luxo), que substituirá o turismo em massa e suas presumíveis-disfuncionalidades. 

Essa transição, em um contexto geral, está positivamente ligada à redução do impacto do turismo na natureza, — já que poucos turistas têm consciência dos impactos que causam durante a viagem — e no aumento da geração de emprego e de capital para os moradores locais. Contudo, ao mesmo tempo, não irá culminar em uma realidade democrática. Do seu lado negativo, vemos uma mudança que promove o elitismo e a inacessibilidade, além da ideia de que a comunidade deverá gerir a si própria, sem contar com a ajuda de uma organização política. 

Ao que sugerem alguns, mas eu mesma não saberia dizer com precisão, o turismo exclusivo é o único recurso restante para a preservação da natureza, acrescido da possibilidade de gerar capital para essa comunidade que recebe pouquíssimo apoio de seus governantes. Me pergunto se, em nome da democratização, o ideal mesmo não seria controlar a circulação das pessoas em defesa à natureza e, paralelamente, reivindicar o auxílio do governo para não precisar que todos os turistas tenham dinheiro? Provavelmente.

E também me pergunto quem poderia garantir que esse lucro seja usado, efetivamente, para o desenvolvimento da Chapada enquanto uma comunidade e não um apenas um destino turístico, necessitado de restaurantes e lojas? Estimo que as possibilidades são bem baixas. Aliás, é sempre importante frisar que estamos falando de um lugar com demandas inegociáveis como saneamento básico, hospitais, escolas e que, dubitavelmente, serão asseguradas sem a presença de políticas públicas, só considerando a administração do lucro (de alguns). 

 

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DO ‘CORREDOR DA MISÉRIA’ À DESTINO DE LUXO

Para deixar claro: a ineficiência do governo de Goiás em relação à Chapada dos Veadeiros é seletiva, capaz de produzir mudanças quando convenientes — como é o caso do Projeto Estadual nas Cataratas do Rio dos Couros, anunciado em junho pelo governador Ronaldo Caiado para ser administrado junto à prefeitura. A formação desse projeto polêmico se sucedeu em apenas duas semanas e o seu custo é bilionário. 

A ideia é promover a preservação de um pedaço significativo do Bioma do Cerrado e realizar outras atividades voltadas para o ecoturismo e integradas com a comunidade local. Acontece que, ao mesmo tempo, o projeto também prevê implantar algumas megaconstruções na “suposta” área de preservação, como o Museu da Água. “Ao longo do caminho, destruíram canelas de ema, jatobás, pequis… Qual o limite da ‘preservação’?”, lamentou o guia João Accioly (https://www.instagram.com/joaoaccioly/)  em nossa conversa para essa reportagem. 

O que achei muito interessante é que a atual moção para “promover a conservação e o desenvolvimento econômico e social.” se parece com a que arrancou a etiqueta de ‘Corredor da Miséria’ da Chapada dos Veadeiros na década de 90. Quando o lugarzinho no nordeste de Goiás, a 240 quilômetros de Brasília e habitado desde 1750, foi elevado a destino turístico — por meio de políticas publicas e privadas. A premissa de hoje, na verdade, é exatamente a mesma dos anos 90; a diferença está na suposta-intenção-velada do atual projeto Gênesis, que na realidade é uma mineradora (atrás do ouro encontrado em Couros) e que, segundo fontes, não dá ouvidos à comunidade local. 

Mas afinal, o que aconteceu de tão especial na década de 90? Nessa época, a Chapada dos Veadeiros realmente saiu do quadro de ‘miserê’. Foram introduzidas as primeiras organizações não-governamentais em Alto Paraíso, todas em defesa do meio ambiente e da comunidade local. Entre elas estão o Amor Moinho, que tem como objetivo a capacitação profissional dos seus associados (entre artesãos e pequenos produtores agrícolas) e cujo resultado é uma feira que acontece aos sábados em Alto Paraíso; a associação ACV-CV, do vilarejo de São Jorge, em resposta à deterioração do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiro; a Fazenda Bona Espero, escola fundada em 70 para crianças carentes; e o WWF (World Wildlife Fund), conhecido no Brasil como Fundo Mundial para a Natureza, com sede na Suíça. 

Essas conquistas estão, basicamente, sendo testadas pela evolução conturbada do turismo. O Parque Nacional da Chapada, por exemplo, é apenas um fragmento do que costumava ser. Na sua criação, em 1961, eram 625 mil hectares, que se transformaram em 65 mil e que, em 2017, viraram 240 mil. Aliás, ainda hoje a própria existência do parque nacional segue sendo questionada. Em 2021, o Projeto de Lei 338/2021 de autoria do deputado Delegado Waldir (PSL-GO) pediu a redução de 73% do parque, pelo prejuízo causado aos agricultores. Pelo menos a resistência da Câmara foi maior.

Outra situação é a enfrentada pelos quilombolas Kalungas, descendentes dos escravos fugidos e libertos da breve e intensa época do ouro em Goiás (1751 a 1770), na qual exploravam sua mão de obra. Os Kalungas ainda hoje seguem ameaçados, mas dessa vez pela grilagem, pelas mudanças climáticas que trouxeram à seca e pelas invasões, mesmo enquanto dominam saberes essenciais para a conservação da biodiversidade do cerrado. 

Por isso, vale entrar em contato com esse conhecimento durante sua viagem se hospedando no sítio histórico Kalunga localizado em Santa Bárbara, onde está aquela cachoeira de mesmo nome, de águas cristalinas, que é um dos pontos altos da viagem. Ou ainda, para as cachoeiras que precisam de guia (se informe, porque não são todas) contrate um guia kalunga, principalmente, se for na região de Cavalcante. 

 

ENDEMISMO DA ‘FLORESTA VIRADA PARA BAIXO’

 

Endêmica é a flora e fauna exclusiva de uma única região. Para o cerrado, isso significa 38% das plantas, 17% dos répteis , 28% dos anfíbios, além de rochas raras — consequência da extinção de um oceano e de uma cordilheira que ali existiram. Esses elementos, juntos, fazem parte das mais antigas formações geológicas do mundo, datadas de mais de 65 milhões de anos (enquanto os demais biomas têm uma média de 10 mil anos.)

E ainda assim, depois da Mata Atlântica, é o bioma que mais sofreu com a ação humana. 

Essas formação provocaram rios em V e, sendo um lugar marcado pelo fenômeno de Cabeças D’Água (quando as chuvas causam o aumento repentino no volume da água das cachoeiras), a Chapada se tornou um centro dispersor de drenagem. 

Você sabia que nove entre dez brasileiros se utilizam da eletricidade produzida pelos seus recursos hídricos?  Por conta da grande rede de raízes do cerrado, a qual lhe concedeu o apelido de ‘floresta virada para baixo’, e que funcionam como uma esponja, os aquíferos Guarani, Urucuia e Bambuí são alimentados. 

Ou então, você sabia que o cerrado tem um dos solos mais férteis para a medicina alternativa, capaz de oferecer novos caminhos para a saúde; caminhos, (preciso dizer) revolucionários? – há quem diga que o ‘cerrado é farmácia’, e uso aqui como exemplo o famoso pequi, que é anti inflamatório natural e tratamento auxiliar para a cura do câncer. Tem uma matéria do Globo Repórter inteirinha dedicada a esse ‘endemismo do cerrado’. 

Mas nada disso impediu que 100 milhões de hectares fossem desmatados até hoje. Eucalipto, soja e pecuária bovina estão entre os principais vetores dessa catástrofe, e aqui dou uma atenção especial ao fogo, que, literalmente, me atormentou nos últimos dias da viagem. 

 

INCÊNDIOS CRIMINOSOS

 

Nos últimos dias da viagem me deparei com o descontrole de um fogo que se alastrava do outro lado da estrada de São Jorge, formando uma neblina que se espargiu por quilômetros, e que fez o dia seguinte amanhecer cinza e o céu chover fuligem — no meu corpo, nas pedras, nas águas…. E não se tratava de um fogo natural, tal como costuma acontecer por raios, na época da cheia, e que até pode fazer florir; ou o fogo do manejo, usado para controlar o caminho de eventuais incêndios. Estávamos em setembro, na seca, e a cidade estava rodeada por um fogo iniciado, supostamente, por uma ação criminosa.

Foram ao todo 36 mil hectares de vegetação destruídos por esse incêndio que atingiu dez metros de altura e impediu, por vários dias, o acesso a muitas cachoeiras, como a do Segredo, a do Couros e o Vale da Lua. Poucos dias depois de ir embora, a prefeitura decretou estado de emergência ambiental. O pior? Os bombeiros acreditam que alguém colocou fogo, deliberadamente, nas margens das rodovias, e há três suspeitos até agora. 

Parece até mais um capítulo da mesma história, para quem sabe que o cerrado enfrenta problemas como esse quase todo o ano, sendo um bioma que já perdeu 50% da sua cobertura vegetal desde 1970. Mas o ponto é que o último incêndio desta magnitude aconteceu há sete anos, e apenas em 2017 ocorreu uma ação comprovadamente criminosa: o que significa que se trata de um momento atípico. E o que 2021 e 2017 têm em comum é efeito dos interesses latifundiários – fazendeiros ateando fogo no próprio solo, manifestações contrárias a zonas de preservação etc. 

Dessa vez o calor não foi natural, foi o tipo de calor que destrói a biodiversidade do cerrado assim como destrói a da Amazônia, às vezes sem nem dar chance para a regeneração… Voluntários se uniram nessa guerra contra o fogo testando o próprio limite, às vezes carregando 23 quilos nas costas, pessoas que muitas vezes tinham outras profissões. 

Lá, em São Jorge, o movimento dos brigadistas não me deixava esquecer da necessidade da união no combate a essa guerra contra o fogo, mas chegar em São Paulo faz perceber que a distância traz um sentimento de impotência e de quase imediata inação. Para concluir, o óbvio: precisamos achar caminhos para encurtar as distâncias e tocar mesmo aqueles que não estão sendo intoxicados pelo cheiro da fumaça.